Mesmo antes da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a despenalização do porte de maconha que aconteceu em junho deste ano, o assunto já era pauta jurídica. Na Bahia, o número de processos na Justiça relacionados à posse de drogas para consumo pessoal cresceu 46,3% entre 2022 e 2023. O volume de novos processos no estado foi de 1.775 para 2.597, aumento acima do índice nacional, que teve crescimento de 130.034 para 146.228, um aumento total de 12,45%, no mesmo período. A expectativa é de que após a decisão do STF os números devem seguir em crescimento.
O combate às drogas através da atuação policial e o crescimento do tráfico de drogas são dois fatores apontados para explicar os dados do DataJud – painel de estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – no estado. “A Bahia tem concentrado grandes esforços no combate às drogas ilícitas pela atuação policial. Isso resulta em mais processos criminais, para além da maior transparência dos dados sobre tal conduta”, explica o professor de processo e prática penal da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Misael França.
De janeiro a abril deste ano somam 974 processos novos no estado; no mesmo período os números do Brasil foram 44.228 novos processos. Para fins de comparação, os registros relacionados apenas à posse de drogas são o 7º tema penal no Brasil com o maior número de novos processos em 2023. A criminalista pós-graduada em prática penal e direito penal econômico Vanessa Avellar reforça que o dado não é uma discussão só da Bahia. “É uma questão que envolve o Brasil inteiro. Porque tem crescido o número de processos com relação não somente à posse para consumo pessoal, mas também a questão da própria traficância”, argumenta.
Diferenciar o usuário de drogas e o traficante é uma questão mal solucionada pela lei 11.343 de 2006 – a lei de drogas – e também pelos registros processuais do CNJ que tratam do assunto, que são o código 5885 “Posse de Drogas para Consumo Pessoal” e o 11.207 “Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar”, segundo Fernanda Ravazzano que preside a Comissão de Ciências Criminais da Ordem dos Advogados do Brasil – Bahia (OAB-BA). E mesmo a decisão do STF foi incapaz de definir um critério objetivo para a diferenciar a posse do tráfico.
“Há uma dificuldade em fazer essa diferenciação e termina que o primeiro filtro pra dizer se você é usuário ou traficante é o próprio delegado, que vai analisar a prisão daquele sujeito. Um segundo filtro é o Ministério Público e o terceiro é o juiz, que é quem vai decidir se procede ou não aquela acusação”, afirma a advogada criminalista.
O critério estabelecido pelo STF é o de que até 40 gramas ou seis plantas fêmeas de cannabis caracterizam porte pessoal. Porém, mesmo com menos de 40 gramas o sujeito ainda pode ser preso por tráfico de drogas quando haja indícios de comercialização, que é um aspecto subjetivo questionado pela advogada.
“A própria decisão do Supremo deixou ali o critério subjetivo que é essa abertura de interpretação ainda para o delegado, para o promotor e, no final das contas, para o juiz”, conta Fernanda. Balança para pesar o entorpecente, armas, volume de dinheiro e o local da apreensão da maconha podem servir para configurar tráfico.
“Esse é o grande problema. Você vai olhar as sentenças penais condenatórias e elas apontam que fulano foi preso encontrado com ‘x’ de droga em local conhecido pela traficância. Mas a gente percebe que esse critério é classista e racista. Um menino no Farol da Barra e um no Bairro da Paz com a mesma droga, sem balança de precisão, sem o volume de dinheiro, vão ter tratamentos diferentes. São os mesmos problemas que a gente já lidava quando falava sobre política de drogas ”, reforça Fernanda Ravazzano. Ela reforça que a tendência é que o número de processos de posse de drogas para uso pessoal siga em crescimento, mas é preciso aguardar para fazer esse parecer.
A Tarde/ Foto: Rick Proctor | Unsplash