FOLHAPRESS – Às perguntas de onde conseguir mate, fernet, alfajores ou boas empanadas, comuns em grupos online de argentinos que vivem no Brasil, somam-se cada vez mais posts do tipo “dicas de bairros para alugar casa”, “onde pesquisar vagas de emprego?” e “ajuda para tirar o RNE”, o documento de estrangeiro.
Trata-se de um sintoma do que o técnico em eletrônica Pedro Canova, 62, chama, numa hipérbole, de “invasão de argentinos”. Ou, como a camareira Cecília, 39, descreve, “uma constante”.
“Toda hora tem alguém perguntando como fazer os papéis para a residência.”
Com o arrefecimento da Covid e a intensificação da crise econômica, o número de cidadãos do país que vieram ao Brasil e pediram residência foi recorde no último ano em relação à série histórica, iniciada em 2010: 6.601.
Os dados, reunidos pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) a pedido da Folha, mostram que a cifra representa um aumento de 21,7% em relação à registrada em 2019, o último ano pré-crise sanitária e, até então, detentor da maior marca, com 5.424. Já em relação a 2021, o aumento é de 82%.
Para especialistas e fontes diplomáticas, a cifra é ligada a uma demanda represada pela pandemia, mas está atrelada ao agravamento da economia local -a pedra no sapato da gestão de Alberto Fernández.
Argentinos que chegaram ao país em 2022 citam esse fator como prioritário. “A crise foi o efeito desencadeador”, afirma Canova, que trabalha com eletrônica e refrigeração e está há um ano no Brasil.
Nascido no município de Concepción del Uruguay, ele vive hoje em Balneário Camboriú -já conhecia o Brasil e também já havia estudado português. Pai de cinco, ele terá em breve a companhia de uma filha, que está terminando a graduação em instrumentação cirúrgica na Argentina e já planeja morar no Brasil.
Autônomo, Pedro diz que, na pandemia, ficou só uma semana em casa, porque tinha de trabalhar. Mas frente à crise que os clientes atravessavam, era difícil cobrar valores que garantissem seu sustento. “Aqui um técnico em eletrônica é valorizado. Na Argentina, não. Ganho três vezes mais no Brasil.”
Para o economista Gustavo Perego, diretor comercial da consultoria Abeceb, de Buenos Aires, “o sistema político argentino não está dando resposta aos problemas”. “Há um processo de inércia inflacionária que cresce cada vez mais,
uma destruição da capacidade de consumo. O governo já não tem músculo para contornar a situação. E isso leva muita gente a se perguntar sobre o futuro em outro lugar.”
Ele chama a atenção para o preço dos alimentos. Enquanto a inflação no país bateu recorde em abril e chegou a 109% no acumulado dos últimos 12 meses, o índice anual projetado para o setor de alimentos é de 197%, mostrou estudo da UBA (Universidade de Buenos Aires). E a expectativa para os próximos meses tampouco é melhor. “A situação no segundo semestre, com o vácuo político das eleições, tende a piorar.”
Cecília, que prefere não dar o sobrenome, chegou ao Brasil em 31 de dezembro de 2021, pouco após as fronteiras serem reabertas. A irmã já vivia no país, e o principal motivo da vinda, além desse, era sentir que seu dinheiro “não valia nada”. “Aqui tenho oportunidades que lá não tenho. Para comer pão, carne e legumes no mesmo dia, era porque você tinha muito dinheiro. Até tomar mate estava ficando caro.”
Mas a realocação de profissionais argentinos no Brasil, mesmo daqueles que são mão de obra especializada, pode demorar. O engenheiro civil Martin Colli, 36, chegou há um ano e ainda busca vaga em sua área numa empresa brasileira. Por ora, trabalha remotamente para uma firma argentina -e, recebendo o salário em pesos argentinos, ainda não conseguiu sentir uma mudança real no poder de compra.
Martin vivia na cidade de Bahía Blanca e, antes de vir para o Brasil, estudou outras possibilidades na América do Sul. “Mas, independentemente da situação política, o Brasil segue uma potência mundial”, diz ele, que no entanto lamenta a demora para se inserir no mercado. “Pensava que levaria um ou dois meses.”
A presença de brasileiros vivendo na Argentina também é representativa. Os últimos dados do Itamaraty, referentes a 2021, mostram que havia 90,2 mil brasileiros no país vizinho -cifra subnotificada, uma vez que os imigrantes não têm de, necessariamente, fazer contato com o setor consular do Brasil.
O número se aproxima das estimativas argentinas da quantidade de brasileiros no país -95 mil- e faz dos brasileiros o oitavo principal grupo estrangeiro a residir no país, atrás de, em ordem decrescente, paraguaios, bolivianos, peruanos, venezuelanos, chilenos, uruguaios e colombianos.
A Argentina, por sua vez, não possui dados históricos que registrem a emigração de seus nacionais, como mostrou recentemente o site de checagem Chequeado, que mergulhou no assunto após figuras como o ex-presidente e opositor Maurício Macri alegarem que hoje ocorre um “êxodo crescente de argentinos”.
A migração de argentinos para o Brasil -e vice-versa- é facilitada e desburocratizada tanto pelo acordo de residência do Mercosul, bloco que os dois países integram, como por um acordo específico entre Brasília e Buenos Aires promulgado em 2009 para facilitar a concessão de residência a migrantes.
O aumento na migração despertou em especialistas que acompanham o tema a preocupação sobre possíveis abusos trabalhistas. O assunto corre por baixo dos dados, mas relatos dão conta de que há cada vez mais argentinos buscando trabalhos sazonais em plantações na época de colheita.
Em fevereiro, quatro trabalhadores do país, incluindo um adolescente de 14 anos, foram resgatados em Nova Petrópolis (RS), pela Polícia Federal. Eles trabalhavam no corte de eucaliptos e estavam em situação análoga à escravidão.
Historicamente, entretanto, os argentinos representam uma pequena parcela dos estrangeiros resgatados em trabalho análogo à escravidão no Brasil -foram 0,2% de todos os resgates do tipo de 2003 a 2022, segundo o Ministério do Trabalho. As principais nacionalidades são bolivianos (42%), haitianos (24%) e venezuelanos (12%), imigrantes que, em geral, entram no Brasil em situação de maior vulnerabilidade.