SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O caos vivenciado em São Paulo desde a chuva da última sexta-feira (3), com duas mortes na capital paulista –sete em todo o estado–, dezenas de árvores caídas, 1 milhão de domicílios sem energia por mais de 48 horas e um rastro de destruição expõem apenas algumas das muitas falhas cometidas por gestores públicos frente aos já esperados eventos extremos provocados pelo aquecimento global.
Ações poderiam ter amenizado o impacto dos ventos de mais de 100 km/h de sexta na infraestrutura urbana, como o manejo adequado de árvores e o enterramento dos cabos de energia e comunicação. A ausência ou ineficiência de tais medidas reflete, porém, um problema sistêmico: a falta de adequação das principais leis urbanísticas ao contexto da emergência climática, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
Existem três camadas legais que estruturam o desenvolvimento da cidade de São Paulo.
O Plano Diretor é a primeira delas, pois é o guia do chamado marco regulatório paulistano. Ele define a estratégia de crescimento da cidade por um período de 15 anos. É nesta lei que a prefeitura decide se pode estimular o mercado a construir mais moradias ou prédios comerciais em uma região da cidade.
O segundo nível é a Lei de Zoneamento, responsável por determinar o que pode ou não ser construído em cada quadra do município. Finalmente, está o Código de Obras e Edificações, para orientar como cada prédio pode contribuir com o bem-estar dos moradores da cidade.
A ausência de medidas que efetivamente ajustem a cidade à crise do clima, nos três níveis do marco regulatório, indicam que questão não tem sido priorizada, segundo a engenheira-civil Denise Duarte, que é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e especialista em adaptação das cidades à mudança climática.
Pior do que isso, a revisão do Plano Diretor tratou apenas superficialmente do problema e a atual discussão da Lei de Zoneamento segue na mesma direção. “Isso definitivamente não foi colocado em pauta”, diz Duarte. “Tanto foi ignorado que chegou-se discutir a liberação do sombreamento da estação meteorológica”, comentou, destacando que uma das versões da proposta liberava a construção de prédios altos no entorno do Mirante de Santana, o que poderia inutilizar a principal estação de observação do clima da capital.
Ainda na gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB), a prefeitura estabeleceu um Plano de Ação Climática, o PanClimaSP. O programa traça um planejamento de mitigação e adaptação a mudanças climáticas, para o período entre 2020 e 2050, pactuado com um grupo de 40 cidades ao redor do mundo.
Direções apontadas no PanClimaSP, como o aprimoramento do sistema de drenagem com soluções baseadas na natureza (mais áreas permeáveis, por exemplo), precisariam ser alinhadas com a revisão do Plano Diretor, o que não aconteceu, segundo a especialista.
Considerando que a privatização do sistema de distribuição elétrica se deu no âmbito federal, há pouco o que a prefeitura possa fazer quanto ao fornecimento. Mas ações mitigatórias para eventos climáticos dentro da legislação amenizariam transtornos provocados por cortes de energia, segundo a advogada especialista em regulação urbana, Mariana Chiesa. “Fala-se muito do que não é de responsabilidade da cidade, mas há muitas outras coisas a serem feitas”, diz.
O aproveitamento das superfícies de prédios para a geração de energia solar local, por exemplo, poderia ter sido amplamente estimulado pelo Plano Diretor para as novas construções. Afirmação com a qual Duarte concorda.
Elas dizem que a geração local poderia abastecer elevadores e até algumas poucas tomadas por andar ou apartamento, sem a necessidade de geradores de energia movidos a diesel, que são poluentes.
Eficiência energética é um dos pontos a serem discutidos no Código de Obras e Edificações, que deverá ser revisto ao final da discussão do zoneamento. Hoje, embora existam normas que tratem do tema, não há lei que obrigue construtores a diminuírem a dependência do ar-condicionado, segundo Duarte.
“A maior parte dos prédios comerciais são envidraçados e com janelas lacradas e precisariam ser evacuados se o ar-condicionado parasse de funcionar”, afirma Duarte. “Seria terrível se essa tempestade tivesse acontecido em um dia útil, em vez do feriado.”
O enterramento dos fios, porém, deve ser mantido na pauta da gestão pública e decisões impopulares, como a cobrança desse serviço também, afirma o economista Ciro Biderman, diretor FGV Cidades.
Com custo que pode passar dos R$ 10 milhões por quilômetro de cabeamento que sai dos postes e vai para debaixo das calçadas, a despesa teria de ser repassado para a conta de luz, diz Biderman. “A cobrança progressiva seria mais justa, e os maiores consumidores pagariam a maior parte.”
Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, reforça que há falhas no planejamento, mas destaca que a resposta aos eventos precisa melhorar. “Quando eventos extremos ocorrem, há ferramentas, como a Defesa Civil, mas elas precisam ser fortalecidas.”
Em resposta às críticas, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) diz que a Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas retomou em outubro as reuniões do PlanClimaSP.
A administração afirma que isso representa um passo inicial para planejar o monitoramento do PlanClimaSP e execução do relatório 2024, essencial para o engajamento do município no cumprimento de suas metas de mitigação e adaptação frente às mudanças climáticas.
Entre outras medidas mencionadas, a prefeitura informou que está em estudo a aquisição de energia solar do mercado privado e a implantação de uma fazenda solar na cidade.
Sobre a revisão do Plano Diretor, a gestão Nunes comentou que as diretrizes e objetivos da política ambiental resumem-se aos princípios norteadores do cuidado com o meio ambiente e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
Disse, ainda, que a revisão está mais sintonizada com as questões de combate às mudanças climáticas, com a incorporação no texto às diretrizes e princípios do Pacto Global das Nações Unidas e seus objetivos de desenvolvimento sustentável.