IGOR GIELOW(FOLHAPRESS) – Em um dos mais dramáticos incidentes da Guerra da Ucrânia em seus 15 meses, uma represa vital no sul do país invadido pelos russos foi destruída na madrugada desta terça (6). Milhares de pessoas começaram a ser evacuadas devido à inundação, e a ação ameaça afetar a maior usina nuclear da Europa.
Russos e ucranianos se acusam mutuamente pelo incidente na represa de Nova Kakhovka, que fica na porção ocupada por Moscou em Kherson, no sul da Ucrânia.
Não está claro o que aconteceu, se uma explosão planejada como Kiev acusava os invasores de planejar havia meses ou, como dizem os invasores, um ataque com artilharia durante a contraofensiva iniciada pelo governo de Volodimir Zelenski no domingo (4).
Do ponto de vista tático, a destruição favorece os russos, pois inunda toda a área de Nova Kakhovka (ou Novaia Kakhovka, na grafia russa) até a foz do rio Dnieper, que era represado desde 1956 para a geração de energia e o fornecimento de água para a Crimeia por meio de um canal. A usina no local foi totalmente inundada, segundo imagens em redes sociais.
Com isso, se os ucranianos planejavam ações ofensivas cruzando o rio, algo que analistas militares duvidavam, não poderão fazê-lo agora. Já o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse que o ataque ameaça cortar o suprimento de água da Crimeia, península anexada por Vladimir Putin como reação à derrubada de um governo simpático ao Kremlin em Kiev.
Para ele, essa foi a motivação do que chamou de “sabotagem da Ucrânia”. Ao menos 16 mil pessoas moram nas margens orientais do Dnieper, o lado que foi retomado por Kiev no fim do ano. A capital homônima de Kherson, 30 km a oeste, está sob evacuação preventiva também, e o governo local acusa a Rússia de bombardear a cidade durante o processo.
Zelenski reuniu-se emergencialmente com seu conselho de segurança e acusou os russos. “Nesta noite, às 2h50 (20h50 de segunda em Brasília), terroristas russos provocaram uma explosão interna nas estruturas da Usina Hidrelétrica de Kakhovka. Cerca de 80 localidades estão na zona de inundação”, afirmou.
O escritório da ONU na Ucrânia condenou a ação, sem apontar culpados. “Infraestrutura civil não é alvo”, disse, em postagem no Twitter. A Otan (aliança militar ocidental) e a União Europeia, claro, condenaram a Rússia pelo que chamaram de “ato bárbaro”.
Segundo o governo de ocupação de Kherson, o nível do rio subiu até 10 metros, e Nova Kakhova está sob as águas. O governador Vladimir Saldo diz que a destruição ele disse que o volume de água ao longo da área afetada não será tão grande. “Não é necessária uma evacuação de grande escala. Isso não vai impedir as forças russas de protegeram a margem esquerda [ocidental]”, afirmou.
Também sob risco está a usina nuclear de Zaporíjia, também ocupada pelos russos, que fica 120 km rio acima. A água do reservatório de Kakhovka garantia o resfriamento de seus seis reatores, cinco dos quais estão desligados desde o ano passado.
Segundo os administradores, não há perigo agora, mas se houver necessidade de resfriamento do reator remanescente, pode haver problemas caso o nível da água baixe consideravelmente -e ele já caiu 2,5 metros. “Falta de água para resfriamento por um longo período causaria derretimento de combustível. Mas nossa avaliação atual é de que não há risco imediato”, disse o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Rafael Grossi.
Isso tudo é insondável agora, mas levou a acusações de terrorismo nuclear por parte de Kiev nesta manhã. Zaporíjia tem sido um ponto de tensões, com acusações mútuas de bombardeios e ataques na região, e o argentino Grossi já esteve lá para avaliar os riscos.
A destruição da represa e da usina vinha sendo especulada desde que os russos deixaram a margem oriental do Dnieper para tomar posições defensivas do outro lado do rio, em novembro. De lá para cá, moradores da margem ocidental vinham sendo realocados para áreas mais distantes da margem, que foram fortificadas.
Mas há, além da acusação de catástrofe humanitária e do risco nuclear, um problema de fato para a Rússia. O reservatório Kakhovka, com capacidade máxima de 18 km cúbicos [Itaipu, no Brasil, tem 29 km cúbicos] alimenta o Canal do Norte da Crimeia, uma estrutura completada em 1976 pelos soviéticos para irrigar a península abaixo.
Em 2014, após a anexação, Kiev represou o canal, dificultando a vida dos moradores da região. Assim que tomaram Kherson, no começo da guerra em 2022, os russos destruíram a obstrução e o canal voltou a fluir água. Agora, a situação é incerta, embora o Kremlin tenha dito nesta manhã que “medidas foram tomadas” para garantir o funcionamento do ramal.
Seja como for, a ação atinge eventuais planos de Zelenski de operar na região. Ao longo da noite, os russos promoveram diversos ataques com mísseis lançados por bombardeiros Tu-95 contra alvos em Kiev, Kharkiv, Dnipropetrovsk e outras cidades ucranianas.
Não houve ainda relatos de combates nesta madrugada ou manhã, após dois dias em que Moscou diz ter repelido ataques probatórios em sua linha de frente, matando 1.500 ucranianos -números negados pelo governo Zelenski.