quarta-feira, dezembro 31, 2025

Risco de morte justifica transfusão em testemunha de Jeová, decide Tribunal

Diante do risco iminente de morte e da inexistência de recursos terapêuticos alternativos, o direito à vida prevalece sobre a liberdade religiosa, e a atuação médica configura estrito cumprimento do dever legal. Com esse entendimento, a 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo afastou o dever do Estado de indenizar a mãe de uma paciente submetida a transfusão de sangue contra a própria vontade.

O colegiado entendeu que, embora o Supremo Tribunal Federal tenha fixado tese favorável à recusa terapêutica no Tema 1.069 de repercussão geral, o caso concreto apresentava peculiaridades de urgência que justificavam a intervenção médica.

Iminente perigo

A ação foi movida pela mãe de uma jovem portadora de aplasia medular — doença rara na medula —, que morreu em janeiro de 2017.

Em dezembro de 2016, diante de um quadro gravíssimo (hemoglobina em 1,6 g/dL, quando o normal é acima de 12), a equipe do hospital fez a transfusão, contrariando a manifestação expressa da paciente, que era testemunha de Jeová.

O relator do acórdão, desembargador Percival Nogueira, afirmou que o direito de recusa não é absoluto quando colide com a extinção da própria vida em situações de emergência.

Quando se estiver diante de um cenário em que há iminente risco à vida, havendo recurso terapêutico capaz de reverter o quadro clínico, o Estado e, por conseguinte, seus agentes devem atuar para impedir a morte do paciente, mesmo que contrário à sua vontade”, afirmou ele.

Para a maioria da turma, os médicos não agiram com excesso, mas no estrito cumprimento do dever legal e sob o amparo do Código de Ética Médica, que excepciona o consentimento em caso de risco iminente de morte. O acórdão ressaltou que a equipe tentou tratamentos alternativos durante meses, recorrendo à transfusão apenas quando todas as outras opções se esgotaram.

Tema 1.069 afastado

A mãe da paciente invocou o Tema 1.069 do STF, julgado em setembro de 2024, que assegura ao paciente capaz o direito de recusar tratamento por motivos religiosos. Contudo, um dos votos vencedores no TJ-SP, do desembargador Bandeira Lins, apontou uma distinção fundamental (distinguishing) para o caso.

Segundo o magistrado, a tese do Supremo condiciona a recusa da transfusão, por parte do paciente, à viabilidade técnico-científica de sucesso de outros tratamentos e à anuência da equipe médica. No caso em discussão, não havia viabilidade de sucesso sem o sangue e a equipe médica não anuiu com a omissão de socorro.

O precedente vinculante não trata de necessidade ineludível, tal qual aquela em que a filha da autora foi submetida à transfusão; mas da hipótese de se efetuar dado tratamento, sem autorização para o recurso a outro — que apenas circunstancialmente poderia vir a se tornar urgente”.

Divergência

O desembargador Leonel Costa abriu a divergência, que acabou vencida. Ele votou pela manutenção da indenização de R$ 100 mil. Para o magistrado, a paciente estava lúcida e sua autonomia deveria ter sido respeitada, conforme o entendimento do STF.

O voto divergente classificou a conduta estatal — que incluiu contenção física e sedação para o procedimento — como tratamento desumano e degradante, comparável à tortura.

A imposição forçada de tratamento médico contra a vontade expressa de paciente terminal, mediante métodos coercitivos e violentos, representa violação inadmissível à autonomia existencial, transformando os momentos finais da vida em experiência de humilhação, sofrimento e desrespeito às convicções mais sagradas da pessoa”, argumentou Costa.

Fonte: Conjur – Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

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