O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 21, por 9 votos a 2, rejeitar a tese do marco temporal, que diz que povos indígenas só poderiam reivindicar terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O julgamento teve início em 2021, a partir de um caso específico que diz respeito a uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. O resultado final, no entanto, deve determinar o futuro de mais 300 territórios ocupados por povos originários em todo o País.
A tese foi usada pela primeira vez em 2009, no julgamento da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Mesmo com a votação concluída ontem, o julgamento não está fechado, já que mesmo entre os ministros que se opõem à proposta há divergências, principalmente no que diz respeito à indenização dos atuais proprietários de terras. A tese será fixada na próxima semana.
O assunto da indenização entrou na discussão depois do voto do ministro Alexandre de Moraes, que afirmou que, além da indenização por eventuais benfeitorias – que já estão previstas na lei -, pessoas que ocuparam um território indígena em boa-fé também deveriam ser indenizadas pela terra nua, o que aumentaria consideravelmente o impacto das reservas indígenas ao erário.
O presidente da Frente parlamentar Agropecuária, deputado Pedro Lupion (PP-PR), reagiu com indignação ao resultado do julgamento do Supremo, expressa em um vídeo publico em redes sociais. Para ele, “o que o STF está fazendo é criar uma barbárie no campo”. “Insegurança jurídica total, sem previsão de indenização, sem garantia para os produtores”, afirmou.
Congresso
O tema do marco temporal também está sendo tratado no Congresso Nacional. Um projeto de lei, já aprovado na Câmara Federal e agora em tramitação no Senado, estabelece a data da promulgação da Constituição como referência para a demarcação de terras indígenas. É nesse projeto que a Frente Parlamentar Agropecuária pretende investir, segundo Lupion. “Não cabe a nós, deputados e senadores da FPA, resolver esse assunto dentro do Judiciário”, disse. “A FPA vai aprovar o marco temporal no Senado na próxima semana”, afirmou, nem que para isso tenha que obstruir outras pautas, inclusive em temas econômicos.
O senador Marcos Rogério (PL-RO) disse que as decisões do STF “são importantes e impactantes”, mas “não geram vínculos no processo legislativo”, de modo que o projeto vai continuar em tramitação. “O nosso compromisso é entregar ao Brasil uma legislação que reafirme o marco temporal.”
Votos
Contra o marco, votaram no STF o relator do caso, Edson Fachin, assim como os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Os nove entendem que o direito das comunidades a territórios que tradicionalmente ocupavam não depende de uma data fixa. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor da tese.
Fux iniciou a votação de ontem, quando já havia cinco votos contrários à proposta do marco temporal. Ao pronunciar sua posição, então, o ministro consolidou uma maioria. “A posse constitucional é uma posse diferente da posse civil. Ainda que não tenham sido demarcadas, essas terras devem ter a proteção do Estado”, afirmou em seu voto.
A ministra Rosa Weber, presidente da Corte, vê o caso como prioritário e fez o possível para concluir a votação antes de sua aposentadoria, que deve ocorrer nos próximos dias.
Rosa Weber já demonstrou proximidade com a questão indígena. Ela foi a primeira presidente do STF a visitar uma tribo institucionalmente, ao ir ao Vale do Javari, em março, onde morreram o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips. Na ocasião, prometeu pautar o marco temporal. A ministra visitou o povo Yanomami e lançou a primeira Constituição traduzida para a língua indígena Nheengatu.
Repercussão
O ministro Celso de Mello, aposentado do Supremo Tribunal Federal, afirma que, sem o direito ao territórios, os povos indígenas ficariam expostos ao risco “gravíssimo” de desintegração cultural e de perda de sua identidade étnica. “Não se pode examinar a questão nuclear do acesso à terra sem se reconhecer que os direitos originários dos povos indígenas sobre os espaços territoriais por eles tradicionalmente ocupados acham-se diretamente vinculados a uma específica finalidade de ordem constitucional: a proteção jurídica, social, antropológica, econômica, mística e cultural dos indígenas e de suas comunidades”, defendeu.
Entre os indígenas, há apoiadores do marco temporal. A deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP) disse que a mudança na regra para demarcação seria essencial para dar um fim aos conflitos fundiários. “Trata de garantir uma segurança para todos, tanto para indígenas quanto para não indígenas. Vai acabar por vez com essa discussão que não vai levar o País a nada, só o dividir”, afirmou.
Estadão Conteúdo